Saturday, February 23, 2008

Memórias do avô português do Nobel da Medicina de 2006

"Este é o relato do que recordo de meu avô Mello. Lamentavelmente incompleto, decerto não faz justiça ao homem, mas é quanto posso, e quero deixá-lo registado para as gerações futuras." Começa assim o depoimento que Jim Mello fez a pedido do açoriano Daniel de Sá, professor reformado e com obra literária (Manuel Alegre vai apresentar o seu último livro), que descobriu a origem portuguesa do bisavô do Nobel da Medicina de 2006, Craig C. Mello, e conseguiu que o pai do laureado escrevesse esta evocação.Ao ler as vagas referências aos antepassados do investigador da Universidade de Massachusetts, Daniel de Sá foi aos registos paroquiais da localidade da Maia, na ilha de São Miguel, e encontrou vários registos sobre Eugénio Castanho de Melo. Além de contar aos membros da família que permanecem na ilha o seu parentesco com aquele vulto da ciência, apurou também que Jim, o pai do Nobel, é paleontologista e formou-se na Universidade de Brown, instituição onde lecciona o seu amigo e escritor Onésimo Teotónio Almeida, que serviu de intermediário. O americano aceitou o desafio e redigiu um texto que foi publicado num pequeno jornal de São Miguel, o Correio do Norte, e, agora, no blogue Aspirina B. "Não sei nada acerca da sua infância e juventude, mas desejo visitar um dia a sua terra natal para fazer uma ideia de como seria o ambiente", admite Jim, ignorando que o seu avô viveu na rua onde Daniel de Sá nasceu e mora. "Quando [o meu avô] veio para Rhode Island estava casado e tinha três filhos: Ana, a mais velha, um rapaz que morreu já aqui, e José [seis, no rol paroquial]. Muitos jovens portugueses vieram para Rhode Island e para o litoral de Massachusetts em finais do século XIX e princípio do XX, à semelhança da invasão hispânica a que assistimos agora. Meu avô trouxe apenas a sua força e determinação. Não falava inglês, não tinha dinheiro e não sabia ler nem escrever. (...) Não sei o que fez para se manter nos primeiros tempos, mas trabalhou durante a maior parte da vida nos caminhos-de--ferro de Nova Iorque, New Haven e Hartford (...). Dei a Jake o seu velho relógio de algibeira, que era a única recordação sua que eu possuía. Ele precisava de um relógio no trabalho a fim de saber quando a linha tinha de estar desimpedida para a chegada dos comboios e penso que esse relógio terá sido para ele um motivo de orgulho."Jim reconstitui a partida dos Açores e sublinha o papel feminino. "Minha avó era de opiniões firmes e talvez o tenha ajudado a convencer-se a vir [para os EUA]. Imagino-a como muitas das mulheres hispânicas que vejo no trabalho: sossegadas, determinadas e dignas, a despeito de serem pobres e pertencerem aos últimos degraus da escala social."Moravam numa pequena casa na Rua Vernon. "Havia (...) uma curiosa arrecadação onde meu avô guardava os utensílios da horta. Assentava em quatro postes, a pouco mais de meio metro do solo. No topo de cada poste havia uma meia bola de metal, voltada para baixo, que penso que era para os ratos não subirem. Essa pequena construção tinha um forte cheiro a terra e eu gostava muito dela. Ao lado havia uma pedra de amolar num suporte de madeira. Lembro-me de meu avô e meu pai me encorajarem a rodar a manivela e de como era duro fazê-la andar durante uns poucos minutos."E, no meio da evocação, a derradeira memória. "Outra recordação forte é a de ter sido levado para ver meu avô moribundo [teria cinco ou seis anos]. Penso que não sabia que ele estava morrendo, mas jazia no seu leito, onde nunca o vira antes, e por isso percebi que algo não estava bem. Ele tinha uma meia a servir de gorro, voltou-se para mim e beijou- -me nos lábios. (...) Não fui ao funeral, mas durante algum tempo não nos autorizaram a usar o rádio em casa, o que eu não terei compreendido."
(IN Diário de Notícias)

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